Argentina - Buenos Aires/ "Yo no Fui" - Sep 2018

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Quando viajo, faço sempre por conhecer um pouco do trabalho que é desenvolvido na área social, em particular no âmbito da promoção da cidadania ativa. Pois é... nesta viagem não foi diferente e, recomendada pelo meu amigo Eduardo Cossi, fui conhecer a organização Yo no Fui – uma organização que desenvolve projetos artísticos e produtivos com mulheres, em prisões na Argentina.

Buenos Aires é uma cidade gigante de forma que, apesar de ser Sábado, saí com uma hora de antecedência em direção ao Bairrio de las Flores. Apanhei o autocarro e desci junto ao Jardim de San José de Flores. Notei que estavam a montar um mercado artesanal. Tinha chegado a uma zona muito agradável, ainda que não turística, e esse facto soube-me bem.

                                                               Maria, Eva, Eu e Liliana

Dirigi-me ao local combinado e encontrei-me com Eva Reinosa, uma jovem mulher na casa dos vinte e muitos. Tinha um lado tímido mas simultaneamente transmitia uma força fora do habitual, adivinhando-se a capacidade de superar desafios.
Pouco depois chegava a Liliana Cabrera, uma colega mais próxima da minha idade, com um ar doce e grande facilidade de expressão.
Entrámos numa casa bonita, muito antiga. É me difícil explicar mas alguma decadência deste edifício acentuava o seu encanto.

Depois de me mostrarem o espaço, Liliana dá início à nossa conversa explicando que tudo começou nos anos 90.
Uma mulher chamada Maria, que trabalhava como administrativa num julgado, ficou particularmente impressionada com a condenação de uma mulher da Bielorrússia, considerada como “mula” (transporte de droga).

               Material de atelier
Aqui a Liliana faz um parêntese e, com acrescentos da Eva, explicam-me que a maioria das mulheres são encarceradas por este motivo. Referem como muitas são vítimas de situações relacionais com homens complicadas ou contextos de vida e familiares muito difíceis. De uma forma geral, estas mulheres são condenadas mesmo que sejam inocentes, já que é praticamente impossível provar que desconheciam estar a fazer transporte de droga.

Regressando à história, esta mulher bielorrussa estava vestida como se fosse Verão, não sabia falar espanhol e não tinha quaisquer apoios. Aqui, quem não tem família ou pessoas próximas tem a vida ainda mais infernal nestas prisões. A comida dada é muito má e pobre, os produtos de higiene são praticamente inexistentes (shampoo, sabonete, pensos higiénicos, etc) e não, não há distribuição de roupa.

Maria começou a visitar esta reclusa e a apoiá-la. Levava-lhe roupa, produtos alimentares e de higiene. Arranjou-lhe um dicionário bielorrusso-espanhol e estabeleceu contacto com a família dela.
Maria é poetisa e, inspirada por esta situação, escreveu um livro de poemas sobre a prisão. Este livro acaba por ganhar um prémio literário e ela é convidada por uma organização para dar workshops de poesia.

Decorria o ano de 2002 e Maria decide aceitar o convite e desenvolver o workshop dentro da prisão.
A sua intenção era fazer um workshop aberto. Começou a convidar e a levar outros poetas para discutir temas do quotidiano, que interessavam às reclusas.
Inicialmente este trabalho começou com cerca de 15 mulheres mas havia cada vez mais pessoas a querer participar e a juntar-se, aumentando e diversificando os workshops. Cresceu de tal forma que se conseguiu organizar 3 festivais de poesia, que ocorreram bianualmente.
Simultaneamente iniciou-se a publicação de poemas feitos pelas reclusas, trabalhando-se também estilo, edição, entre outras áreas.

Em 2006, algumas das reclusas que participavam destes workshops começaram a sair em liberdade e, nessa altura, Maria apercebeu-se que apesar da vida ser muito complicada dentro de uma prisão, a saída traz questões de integração gravíssimas.  É então, com estas mulheres que saíram em liberdade, que se constitui a organização “Yo no Fui”. São estas mulheres que também se organizam para conseguir condições (espaço, materiais, etc.) e dá-se início a workshops fora da prisão.

Era difícil pensar em subsistir enquanto poetas mas todas sabiam de costura. Deram início a um processo de constituição de cooperativa que se finalizou em 2014.
Atualmente os ateliers/workshops abrangem:
-       Poesia, que possibilita também um pensamento crítico sobre a experiência da prisão, reflexão sobres questões de género, etc.;
-       Comunicação – dentro da perspetiva penal, pela luta dos direitos das mulheres ex-reclusas;
-       Serigrafia; Desenho têxtil; Jornalismo; Ferramentas digitais, Encadernação.
-       Espaço criança – para que as mães possam participar nos diferentes ateliers. A este propósito, Eva refere que, uma vez que a esmagadora maioria das mulheres são mães solteiras, vão aproveitar para iniciar um espaço de reflexão e partilha sobre a maternidade.


                                    Pátio nas instalações "Yo no Fui"

A “Yo no Fui”, intervém em 4 complexos prisionais – muito embora a sua atuação no complexo 4 esteja suspensa por repressão policial, na sequencia de comunicação sobre manifestação pacífica no dia da mulher dentro da prisão -  e abrange cerca de 300 mulheres dentro e fora de prisões.

Há uma estratégia clara de envolver as mulheres que saiam das prisões na organização, não só para dar continuidade aos espaços de aprendizagem mas também criar rede de apoio. A “Yo no Fui” são estas mulheres e passa sobretudo por valorizar a experiência de se ter estado presa e das competências únicas que essa mesma experiência trouxe.
Confesso que fiquei profundamente tocada por esta conversa. Pela sensibilidade, afecto, força e espírito de missão destas duas mulheres e foi com um sentimento de privilégio por as poder ter conhecido que me despedi de Liliana e Eva. 

English version

When I am traveling, I always try to know a little of the work that is developed in the social area, particularly in the scope of promoting active citizenship. Well ... on this trip it was not different and, recommended by my friend Eduardo Cossi, I went to meet the organization "Yo no Fui" - an organization that develops artistic and productive projects with women, in prisons in Argentina.

Buenos Aires is a giant city so, despite being Saturday, I left with an hour in advance towards the Bairrio de las Flores. I took the bus and I went down to the Garden of San José de Flores. I noticed they were setting up a craft market. I arrived to a very nice area, even not a touristic one, and I felt well with that.

                                                        Garden of San José de Flores

I went to the meeting point and I met Eva Reinosa, a young woman in her mid-twenties. My first impression was that she had a timid side but at the same time transmitted an unusual force, guessing the ability to overcome challenges.
Shortly afterwards Liliana Cabrera arrived - a woman close to my age, with a sweet face expression and easy talking.
We entered in a beautiful house, very old. It is difficult for me to explain but some decay of this building accentuates its charm.
After showing me the space, Liliana starts our conversation by explaining that everything began in the 90's.
A woman named Maria, who worked as a clerk in a court case, was particularly impressed by the judicial conviction of a woman from Belarus, considered a "mule" (drug transport).

Here Liliana makes a parenthesis and, with Eve's additions, explain to me that most women are imprisoned for this reason. They report that many are victims of relational situations with complicated men or very difficult life backgrounds and family members. These women are generally condemned even if they are innocent, since it is virtually impossible to prove that they were unaware of the fact that they were carrying drugs.

Going back to the story, this Belarusian woman was dressed as if it were Summer, could not speak Spanish and had no support. Here, those who have no family or close friends have even more hellish lives in these prisons. The food given is very bad and poor, the hygiene products are practically nonexistent (shampoo, soap, sanitary towels, etc) and no, there is no clothes distribution.

Mary began to visit this recluse and support her. She brought her clothes, food and hygiene products. She got her a Belarusian-Spanish dictionary and she made contact with her family.
Maria is a poetess and, inspired by this situation, she wrote a book of poems about the prison. This book ends up winning a literary prize and she was invited by an organization to give poetry workshops.

              "Yo no Fui" facilities
It was the year 2002 and Maria decided to accept the invitation and develop the workshop inside the prison.
Her intention was to have an open workshop. She began to invite and lead other poets to discuss everyday topics that interested inmates.
Initially, this work began with about 15 women but there were more and more people wanting to participate and to join in, increasing and diversifying the workshops. It grew in such a way that it was possible to organize 3 festivals of poetry, which occurred biannually.
Simultaneously began publishing poems made by the inmates, also working style, edition, among other areas.

In 2006, some of the inmates, who participated in these workshops, began to go free. At that time Maria realized that although life is very complicated inside a prison, the exit brings serious integration issues. It was when some of these women left in freedom, that the organization “Yo no Fui" was created. It was also these women who also organized themselves to get conditions (space, materials, etc.) to start workshops outside the prison.

It was hard to think of subsisting as poets but all of them knew how to sew.
They started a process of establishing a cooperative that it was finalized in 2014.
Currently, the ateliers / workshops cover:
- Poetry, which also enables critical thinking about the prison experience, reflection on gender issues, etc.;
- Communication - within the criminal perspective, for the struggle for the rights of women ex-prisoners;
-Serigraphy; Textile design; Journalism; Digital tools, Binding.
- Child space - so that mothers can participate in different workshops. In this regard, Eva says that, since the overwhelming majority of women are single mother, they will take advantage to start a space for reflection and sharing about motherhood.

"Yo no Fui" intervenes in four prison complexes - even though its performance in compound 4 is suspended due to police repression, following a communication about a peaceful demonstration on women's day inside the prison - and covers about 300 women inside and out of prisons.


                                                                      "Yo no Fui" facilities

There is a clear strategy of involving women who leave the prisons in the organization, not only to continue the learning spaces but also to create a support network.
"Yo no Fui" is these women and it is mainly about valuing the experience of being in prison and the unique skills that the same experience has brought.


I confess that I was deeply touched by this conversation because of the sensitivity, affection, strength and spirit of mission of these two women. It was with a sense of privilege of being able to know them that I had said goodbye to Liliana and Eva (reviewed by Gonçalo Coelho Rosa).

Comentários

  1. Cara Maria, artigo fabuloso. É um trabalho que puxa pela alma e faz de si e dos que consigo caminham, pessoas melhores, mais resolvidas e com uma melhor relação com o mundo.
    Beijinho.
    LT

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