Argentina - "La Poderosa" - Sep 2018

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Faço parte de um grupo de trabalho internacional que tem por objetivo promover "neighborhoodization" - ou seja a fomentar comunidades de vizinhança e atividades de bairro que concorram para os objetivos sustentáveis do milénio. E a razão é simples. Convictamente considero que as pessoas sabem, melhor do que ninguém, quais são as suas próprias necessidades e que, organizadas, conseguem dar respostas a essas mesmas problemáticas.

Talvez por isso, enquanto estive em Buenos Aires, uma das organizações que me foi recomendada conhecer pelo meu amigo Eduardo Cossi foi a "La Poderosa". Pesquisei o site mas, confesso, não ficou claro para mim o que faziam e foi curiosa que me dirigi ao "Assentamento Transitório" da Zavaleta, uma das muitas comunidades/favelas da capital argentina.

       Sara, eu e Kathya          

Apanhei o metro até ao Parque Patrícios onde um voluntário, me esperava para me acompanhar até à sede da organização. Tomámos pouco depois um autocarro e, passadas algumas paragens, chegávamos a uma área da cidade que nada tinha a ver com Recoleta, Palermo ou San Telmo. 

As casas eram de construção precária, muitas ainda não acabadas, e estendiam-se a perder de vista. 

O dia estava cinzento. Ainda assim, eu sentia-me bem-disposta e entusiasmada. Curiosa, comecei a reparar em brigadas de polícia (diria do exército?), vestidos com coletes amarelos, capacetes e armados até aos dentes. Reconheço que, de forma paradoxal, a sua presença não me transmitia tranquilidade.

O meu companheiro deslocava-se com à vontade e eu seguia-o tranquilamente. Chegados à sede, uma casa pintada de vermelho e grafitada, de forma cuidada, com desenhos e palavras de intervenção, encontravam-se à minha espera outro voluntário e a Sara Molina -  uma das “vizinhas”.

Após apresentações, quem toma a palavra é a Sara. Rapidamente é me explicado que a "La Poderosa" tem por princípio que só quem está nos próprios bairros tem legitimidade para falar do contexto onde vivem.

A Sara conta que a "La Poderosa" é uma entidade que tem por missão a organização de bairros populares (sociais)/comunidades/favelas e que nasceu naquele mesmo bairro, em 2004. 

A Zavaleta é um bairro popular, considerado um "assentamento transitório" pelos órgãos governamentais mas que, na prática, tem cerca de 50 anos! Dei por mim a pensar que há coisas definitivas que não duram tanto tempo...

Por ser transitório, estes territórios não têm as mesmas condições de outros e a "La Poderosa" o que faz é ajudar as pessoas a organizar-se para melhorar as condições do seu bairro.

Questões como acesso a saneamento, esgotos, eletricidade, urbanização, violência de género, educação e violência institucional, são algumas das áreas discutidas e trabalhadas.

Rua de Zavaleta

A minha anfitriã, sugere-me um passeio pelo bairro e eu acedi prontamente. Os quatro, percorremos as ruas estreitas, ao som de reggaetons e cumbias que se escutavam aqui e ali. 

Visitámos a cooperativa de carpintaria e a cantina comunitária. Eu pude testemunhar o forte aparato policial existente e a cooperativa de limpeza urbana do bairro vizinho em ação. 

Visitámos ainda a casa de uma família, cuja a mãe cozinhava na presença de 4 crianças, uma delas, bebé de colo, já sua neta. Receberam-me com à vontade, sendo notório que estavam habituadas a acolher visitas inesperadas. Soube mais tarde que esta mãe tinha perdido um filho, resultado de uma bala perdida, e transformou-se numa embaixadora do bairro, sobre questões relacionadas com a violência.

Após o passeio e regressados à sede, dei seguimento à minha entrevista, contando também com a participação da Kathya Lara, outra vizinha, muito despachada e com grande facilidade de expressão, que se juntou ao grupo.

Peço-lhes então para que me contem como intervêm.

A Sara e a Kathya vão se complementando. Explicam que tudo começou com Natcho e mais dois amigos, jovens adultos não residentes, que vinham jogar futebol com as crianças e jovens do bairro. Posteriormente, iniciaram um espaço de apoio escolar e, ao fazê-lo, inteiraram-se de uma série de dificuldades e problemáticas. Começaram então a chamar os pais dos meninos e a fazer assembleias, uma vez por semana, para solucionar essas mesmas questões.

Atualmente, no bairro da Zavaleta funciona:

- Espaço de comunicação popular - inclui a  revista "La Garganta", jornalismo popular e fotografia (toda a revista é elaborada por residentes).
- Igualdade de Género;

- Apoio escolar;

- Música;

- Futebol;

- Cooperativas de carpintaria, empanadas, panquecas, biscoitos -  ajudam com a aquisição de materiais e a iniciar, divulgam e dão o nome.

- Controlo popular à força policial - há situações de abuso de intervenção policial sobre os residentes, à semelhança dos relatados pela Redes da Maré, quando estive no Rio de Janeiro. 

Por outras palavras, "La Poderosa" desafia os moradores a reivindicar e a lutar pelos seus direitos, mas também a atuar e a participar em assembleias semanais, para definição e implementação de planos de ação.

O mais extraordinário para mim? A organização são os próprios residentes (e os voluntários que os apoiam)! Não há referência a técnicos e parece não ter outra solução senão ser sustentável.

Atualmente, "La Poderosa" está representada nas 24 províncias argentinas e também no Peru, Uruguai, Brasil, México, Chile, Cuba, Venezuela, Bolívia, Equador e Colômbia, assumindo-se como uma organização latino-americana. 

                       Espaço de Comunicação

Em todos esses países, mantém o propósito de apoiar pessoas com baixos recursos económicos e a promover a partilha de experiências em diferentes estados.

Realizam reuniões semanais ao nível de bairro e de província e utilizam a sociocracia como ferramenta. Ou seja, as suas decisões são tomadas não por maioria, mas por acordo ou consentimento. 

No nível da província, participa um representante de cada bairro, eleito por cada grupo. No nível nacional, esforçam-se por reunir a cada seis meses, embora estejam sempre em estreita comunicação entre si. Anualmente reúnem ao nível latino-americano.

Apesar de ser uma organização não partidária, pode-se adivinhar a conotação política associada, a começar pelo fato de ter o nome da mota com a qual Che Guevara e Alvaro Granados viajaram pela América do Sul.

Sendo eu uma pessoa que realmente tem dificuldade em se identificar com um partido político específico, assumo que me encontrava entusiasmada e grata quando me despedi dos meus anfitriões e me preparava para regressar a casa. "La Poderosa" provou-me que era possível ter uma governança bottom-top.

Partindo do pressuposto de que, evidentemente, nem todos concordamos com tudo e que temos perspetivas políticas diferentes ou opiniões muito diversas sobre questões tão controversas, como a lei de descriminalização do aborto (recentemente chumbada na Argentina), ainda assim é possível chegar a consentimentos, em vez de votações em que uma maioria predomina sobre os restantes (muitas vezes não tão poucos como isso). Este tipo de decisão - por consenso ou consentimento  - permite que todos tenham voz e, de certa forma, se assumam como corresponsáveis pela melhor solução possível alcançada, naquele momento.

English Version

I am a part of an international working group that aims to promote "neighborhoodization" - that is, the promotion of neighborhood communities and neighborhood activities that contribute to the sustainable goals of the millennium. And the reason is simple. I believe that people know better than anyone what their own needs are, and organized, they can respond to those same problems.

Maybe that's why, while I was in Buenos Aires, one of the organizations that I was recommended to meet by my friend Eduardo Cossi was "La Poderosa". I researched the site but I confess that it was not clear to me what they were doing and it I was curious. I went to the "Transient Settlement" of Zavaleta, one of the many communities / favelas of the Argentine capital.

I took the metro to Parque Patricios where a volunteer, was waiting for me to accompany me to the headquarters of the organization. We took a bus shortly after a few stops and arrived in an area of the city that had nothing to do with Recoleta, Palermo or San Telmo. The houses were of precarious construction, many of them still unfinished, and stretched out of sight. 

The day was gray. Still, I felt good and enthusiastic. Curious, I began to notice police brigades (army say?), dressed in yellow vests, helmets and armed to the teeth. I confess that, paradoxically, their presence did not convey tranquility.

My companion moved at will, and I followed him quietly. Arriving at the headquarters, a house painted red and graffitied carefully with drawings and words of intervention, I was being waited by another volunteer and Sara Molina - one of the neighbors.

                                                                          Headquarters of "La Poderosa" in Zavaleta

After introductions, Sara takes the floor. It is quickly explained to me that "La Poderosa" is based on the principle that only those who are in the neighborhoods themselves have the legitimacy to speak of the context in which they live.

Sara says that "La Poderosa" is an organization whose mission is the organization of popular neighborhoods / communities / favelas and that it was born in that same neighborhood, in 2004. Zavaleta is a popular neighborhood, considered a "transitory settlement" by government agencies but, in practice, it is about 50 years old! I thought for myself that there are definitive things that do not last so long ...

Because it is transitory, these territories do not have the same conditions as others and "La Poderosa" does it to help people organize themselves to improve the conditions of their neighborhood.

Issues such as access to sanitation, sewage, electricity, urbanization, gender violence, education and institutional violence are some of the areas discussed and worked,

My host, suggests me a tour around the neighborhood and I acceded promptly. The four of us walked the narrow streets, to the sound of reggaetons and cumbias every now and then. We visited the carpentry cooperative and the community canteen. I was able to witness the existing strong police apparatus and the urban cleaning cooperative, of the neighboring neighborhood, in action.

We also visited the home of a family whose mother used to cook in the presence of 4 children, one of them, a baby boy, already his grandson. They received me naturally, and it was  clear to me  that they were accustomed to receiving unexpected visits. I knew later that this mother had lost a child, the result of a stray bullet, and became a neighborhood ambassador on issues related to violence.

After the tour and returned to the headquarters, I continued my interview, also counting on the participation of Kathya Lara, another neighbor, very dispatched and with great ease of expression, who joined the group.

I ask them to tell me how "La Poderosa" intervenes.

Sara and Kathya complemented each other. They explain that it all started with Natcho,  young man not resident in the neighborhood, and two other friends, who came to play soccer with the children and youth. Subsequently, they began a space of school support and, in doing so, they realized a series of difficulties and problems. Then they started calling the boys' parents and holding assemblies once a week to solve the same issues.

Carpentry cooperative

Currently, in the neighborhood of Zavaleta it works:

- Space of popular communication - including the magazine "La Garganta", popular journalism and photography (all the magazine is made by residents);
- Gender equality;

- School support;

- Music;

- Soccer;

- Carpentry, empanadas, pancakes, biscuits cooperatives - it helps with the acquisition of materials and start, disseminate and give the name.

- Popular control of the police force - there are situations of abuse of police intervention over the residents, similar to those reported by Redes da Maré, when I was in Rio de Janeiro. The work consists in the collection of cases of abuse, denunciation and sending to judicial courts, in order to avoid the violation of human rights. It seems that the situations are not sporadic and, in fact, I even got to know the mother of a boy killed by the police a few years ago and a representative of the neighborhood in assemblies.

In other words, "La Poderosa" challenges residents to claim and fight for their rights, but also to act and participate in weekly assemblies, defining and implementing action plans.

What is most extraordinary for me? The organization is the residents themselves (and the volunteers who support them)! There is no reference to technicians and it seems to have no other solution but being sustainable.

Currently "La Poderosa" is represented in the 24 Argentine provinces and also in Peru, Uruguay, Brazil, Mexico, Chile, Cuba, Venezuela, Bolivia, Ecuador and Colombia, becoming a Latin American organization. In all these countries it maintains the purpose of supporting low income people and promoting the sharing of experiences in different countries.

They meet weekly at the neighborhood level and at the province level. They use sociocracy as a tool, so their decisions are made not by majority but by consent. At the provincial level, a representative from each neighborhood participates, who is elected by each group. At the national level they seek to meet every six months, although they are always in close communication with each other, and annually at the Latin American level.

Mural in Zavaleta

Despite being a non-partisan organization, one can guess the political connotation that governs it, starting with the fact that it has the name of the motorcycle with which Che Guevara and Alvaro Granados traveled throughout South America.

Being I a person who really has a hard time identifying with a specific political party, I assume you that it was enthusiastic and thankful that I said goodbye to my hosts and returned home. "La Poderosa" proved to me that it was possible to have a bottom-top governance.

On the assumption that, of course, we do not all agree on everything and that we have different political perspectives or very different opinions on controversial issues such as the abortion decriminalization law (recently downed in Argentina), it is still possible to reach consent, instead of votes in which the majority predominates over the others (often not as few as that). This type of decision-making - by consensus or consent -  allows everyone to have a word and, in one way, being co-responsible for the best possible solution achieved at that moment (reviewed by Ricardo Henriques).